Desde março, o Teatro da Vertigem desenvolve um projeto de pesquisa, do qual participo como dramaturgo, em Brasilândia, zona norte de São Paulo.
Uma vez por semana, o diretor propõe improvisações e exercícios aos atores. Num exercício recente, cada indivíduo do grupo foi deixado num ponto aleatório da periferia, para que durante uma hora interagisse com a vida do lugar.
A mim coube uma igreja evangélica. Um homem montava guarda do lado de fora da loja convertida em igreja.
Perguntei se podia assistir ao culto das três horas e entrei.
Não sabia que era o pastor.
A sala vazia tinha as paredes pintadas de azul claro, o chão de ladrilhos e filas de cadeiras pretas estofadas.
No fundo, um estrado com o púlpito, uma bateria e um órgão elétrico.
Acima do estrado, nuvens pintadas sobre o azul da parede.
Faltavam 15 minutos.
O tempo de examinar os formulários e envelopes para as ofertas (em dinheiro) empilhados numa mesa ao lado da porta.
Fiquei intrigado com uma citação bíblica num dos formulários, que ali ganhava um sentido perturbador, associando a igreja ao mundo da exceção, onde a lei não entra: "(...) Fé, mansidão, temperança. Contra essas coisas não há lei".
Pouco antes das três, apareceu uma mulher de tailleur branco com gola e bolsos pretos, que cumprimentou o pastor e veio até mim.
Pediu que eu me sentasse mais à frente.
A "reunião" ia começar.
E foi quando comecei a ficar nervoso.
Não havia ninguém além de mim.
Queria assistir, não participar.
Durante mais de uma hora eu seria o objeto exclusivo do esforço do pastor e de sua assistente, a evangelista obreira, para me tirar das garras do diabo e me converter em crente, na sua luta diária para angariar almas e fundos para a causa de Jesus.
De mãos dadas numa espécie de ritual de abertura, pastor e evangelista trocaram palavras incompreensíveis que na Idade Média teriam sido logo associadas ao demônio.
O pastor ligou o órgão elétrico numa cadência de fundo, típica de churrascaria, e subiu ao púlpito com as primeiras palavras do sermão.
A evangelista se postou ao meu lado, de forma a poder me vigiar e dirigir.
O pastor me mandou fechar os olhos, pôr a mão no coração e dizer: Glória ao Senhor! "Mais alto!" Eu repeti: Glória ao Senhor! "Mais alto! Dispa-se da sua vergonha! Você sente Jesus entre nós? Diga! Sente ou não sente?!" Sinto. "Mais alto! Mais alto!"
Tinha começado a liturgia do terror. Depois vieram as palmas, cujo ritmo me era imposto pela evangelista, enquanto o pastor entoava uma canção com palavras bíblicas.
Se eu parava de bater palmas, a evangelista imediatamente retomava a batida, dando a entender que eu não devia esmorecer. Os dois cantavam. Eu batia palmas e, de vez em quando, induzido pelos dois, gritava: "Glória ao Senhor!".
Me chamavam de "amado". Lá pelas tantas, o pastor disse que o amado podia parar de bater palmas e se sentar para preencher o formulário entregue pela evangelista numa prancheta.
Não havia escapatória. Era um pedido de oração com uma lista de problemas (desemprego, dívidas, barulhos ou vozes do Além, pessoas desaparecidas, vícios que atrapalham, dor de cabeça estranha etc.) que deviam ser assinalados com um "x".
Apenas uma das opções pedia esclarecimentos: "Se você sofre de alguma doença que não aparece nos exames e chapas, ou o médico examina e diz que você não tem nada, descreva o que sente".
No final, era preciso deixar nome, endereço e telefone. O pastor me chamou até o púlpito. Fui com o formulário preenchido na mão. Ele me disse: "De Deus ninguém zomba! Deus não perdoa! Você vai assumir um compromisso com Jesus. Vai voltar aqui durante sete semanas. Compromisso com Jesus não pode ser quebrado. Você vai assumir o compromisso, amado?". "Vou ter que pensar." (!?) "Tem que decidir agora.
Você está com Jesus ou com o diabo?! Vai assumir o compromisso ou não vai?"
A intimidação e as ameaças prosseguiram até o pastor, irritado, se dar conta do grau de dificuldade e me mandar de volta para o meu lugar.
Então, recorreu a um papelinho (que eu supus ser um roteiro para o caso de recalcitrantes) e passou a seguir os passos de uma nova tática, com mais orações, olhos fechados e palmas.
Sempre achei que as igrejas evangélicas tinham vingado no Brasil por terem assumido o vácuo deixado pelo Estado entre os chamados excluídos.
Nunca tinha me passado pela cabeça que a estratégia é a do medo e da coerção, a mesma usada pela Igreja Católica em meio à barbárie da Idade Média, sendo que agora nem precisa haver religiosidade.
Quem entra em busca de acolhimento espiritual é recebido com ameaças.
Do lado de fora estava ruim? Seja bem-vindo, aqui dentro não é diferente. Eu estava irredutível. O pastor apelou:
"Deus criou a autoridade. Não basta obedecer à polícia lá fora. Tem que obedecer ao pastor e à evangelista aqui dentro, representantes da autoridade de Deus". Ou seja: este é um mundo do terror em que você sobrevive acuado entre a autoridade do tráfico, da polícia e da igreja. "Contra essas coisas não há lei." Nem a quem recorrer. Já fazia mais de uma hora que eu estava ali. O pastor me mandou fechar os olhos de novo. Me levantei e saí, enquanto ele praguejava: "Você não pode sair. Não fez a oferta!".
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